Pipocas às competições de ciclismo e à vida real

Para o mundo será “só” mais um sucesso da NetFlix; para mim, foi uma viagem no tempo: um cocktail de passado, presente e futuro-que-se-quer-cumprir!

#lifeonabike tem-me proporcionado experiências que vão para lá do desporto: são sempre experiências (multi)culturais pois implicam países, continentes, hábitos e costumes muito distintos dos nossos lusos.
Competir a prova por etapas de 4 dias, UCI HC Epic Israel – the Ultimate Holy Land Mountain Bike Challenge, naquele país foi uma dessas experiências.

À partida, porque a globalização assim o camufla, há um véu de familiaridade, mas, assim que a rotina do dia se desenrola, apercebemo-nos do “novo”: são os alimentos, as refeições, as suas combinações; os cânticos e as orações que entram pelas janelas do hotel ou atravessam as montanhas durante a etapa; o olhar dos homens; os gestos das mulheres; … e é o “shabāt” e foram os judeus no aeroporto com destino à América (que agora, depois de ver a série “Unorthodox”, sei que pertencem à comunidade de Williamsburg, um bairro de Brooklyn, Nova Iorque. – Como o sei? Como não o saber?! Chocante o desfasamento cultural: as roupas de outras épocas; o asseio; a conduta).

A minissérie “Unorthodox” baseia-se na história real de uma mulher judia em fuga de uma misteriosa comunidade ultra-ortodoxa e conta, por certo, a angústia de muitas “Esthers” anónimas.

Apesar dos tenros 19 anos, Esther está já casada há um ano e grávida – este é o papel da mulher no interior de uma comunidade fechada, misteriosa e extremamente religiosa como a de Williamsburg. Para os judeus ultra-ortodoxos, a vida faz-se entre regras rigorosas que os isolam do mundo. Eu pude testemunhar isto durante aquelas horas partilhadas no aeroporto e no avião: como me intrigavam as falas, os jeitos, os cheiros… As roupas! Como me intrigavam as roupas! Só visto! Parecia que tinha recuado tantas décadas no tempo! Aquilo fez-me confusão: por um lado, o telemóvel na mão ao bom “style americano” mas, por outro, aquelas saias que já ninguém usa, aqueles sapatos (bolas, ainda se fabrica daquilo?), as calças e as camisas brancas imaculadas dos homens…

Eu pensava que décadas após o fim dos guetos de judeus na Europa, a maioria vivesse hoje adaptada ao mundo moderno, mas aquelas famílias eram tão diferentes de outras judias com quem tinha privado durante os dias de prova! Hoje, graças à “Unorthodox”, eu sei que eles são “ultra-ortodoxos” e que preferem manter-se isolados – até porque, como é descrito na minissérie, sempre que viveram junto “dos outros”, Deus castigou-os.

Voltando à história de Esther que decide escapar ao marido, a um casamento arranjado e à comunidade, a única que conheceu em toda a vida, trata-se de um relato dramático, particularmente por se inspirar na vida de Deborah Feldman, cuja autobiografia serviu de base à produção original da Netflix. Quatro episódios bastaram para revelar, às vezes de forma subtil, outras vezes nem tanto, os hábitos, tradições e regras dos judeus hassídicos (que tanto tinham chamado a minha atenção há nem um ano atrás entre a partida de Israel e a escala na Europa, para eles a caminho da América, para mim a caminho de Portugal).

Quando estive em Israel para competir na prova por etapas, já por dois anos seguidos, vivi “o dia de descanso judaico”, chamado “shabat” e, apesar de me adaptar e respeitar os costumes, tal como muitos europeus e ocidentais, testemunhava as regras rigorosas que têm que ser observadas. Uma delas é a proibição de transportar ou empurrar objetos em espaços públicos – agora tentem imaginar o que isto implica para a organização da prova e para as equipas. Como a regra se tornou difícil de aplicar nos dias de hoje, os rabinos resolveram contorná-la criando uma espécie de área delimitada onde essa regra pode ser quebrada: o eruv. Este espaço é delimitado por arames presos a postes, que criam uma espécie de barreira. Dentro desse espaço, o transporte é permitido durante o shabat. Quando um desses fios se quebra, o espaço é violado e deixa de existir — por isso, a organização é exemplarmente rigorosa e zelosa e, no plano da minissérie, é por isso que Esty estava impedida de sair com a carteira e as mulheres de se deslocarem com os carrinhos de bebé, logo no início da narrativa. Ainda assim, o que mais nos fazia franzir a sobrancelha era “a máquina de café” – mas que mistério! No dia do shabat as máquinas de café não funcionam e estão cobertas por um pano. Não seriam só as máquinas de café a não funcionar se a regra não fosse contornada. A regra é de que os objetos que necessitem de energia não podem ser ativados no dia do descanso (afinal, é dia de descanso); então, o que se faz é deixar tudo ligado durante 48h. É isso! Mas… então porque não se deixa a máquina de café ligada? Eu sei lá! E lá fazemos café solúvel (que não é a mesma coisa, vocês sabem). Imaginem o que este hábito representa para a organização e para os hotéis; o ar condicionado, por exemplo, das duas uma: ou fica ligado 48h e é um gelo ao entrar de manhã na sala de refeições ou não se liga e fazemos sauna; nos quartos cada um faz o que quer! Ah! “O dia de descanso judaico” é mesmo dia de descanso e guardado para o Senhor e para a família, mas claro que eu pensei que, um pouco como nós por cá, se contornaria a regra e poderia comprar uns souvenirs no sábado depois da prova: pois, estava enganada e não havia qualquer comércio aberto. RRsSSs!!!

Durante a minha estadia na “terra santa” também de apercebi daquele pequeno adereço de madeira que está em todas as portas e onde todos tocam, afixado nas entradas das divisões e, claro, na entrada de cada casa: o mezuzah que contém um pergaminho com inscrições religiosas. Há algumas regras na colocação da mezuzah: só deve ser colocada em portas que separam divisões, das quais se excluem as casas de banho. Diz a tradição judaica que quem entra na divisão deve tocar ou beijar a mezuzah.

A língua que falam é o Iídiche ou yiddish, uma língua germânica que inclui elementos de hebraico, aramaico e de outras línguas eslavas. Era falada pela maioria dos judeus antes do holocausto e hoje é maioritariamente usada pelas comunidades hassídicas como a de Williamsburg.

Quando regressava da prova e observava aquelas famílias, compreendia que algumas mulheres, jovens, usavam peruca. Quão raro vos poderia isto soar? Pois, aprendendo com a protagonista: Esty foi obrigada a rapar o cabelo depois do casamento porque as leis religiosas consideram que existem partes do corpo das mulheres que são impróprias por serem potencialmente atraentes do ponto de vista sexual e que, por isso, devem ficar longe da vista. Aliás, tido como parte imprópria, o cabelo deve então ficar escondido, seja através de um turbante ou de uma peruca. Trata-se de uma tradição que remonta há milhares de anos, mas que foi mudando com os tempos: com o surgimento das perucas, também as mulheres perceberam que poderiam contornar as regras. “Louco”, não? Paro a pensar que, independentemente de religião ou de sistema político, o ser humano é o mais “esquizofrénico” dos animais: vivemos em sistemas imaginários! Tudo é uma ilusão! Temos a liberdade de viver a realidade que queiramos criar para nós…

Oh, pá, e aqueles caracóis a pingar doa cantos das suíças? Há lá coisa mais “castiça”! E digo isto com todo o respeito! A sério! Porque eu respeito qualquer conduta desde que ela não represente exploração, violência e sobreposição! Aquele “penteado” é o mitzvah, isto é, um dos comandos de Deus e uma obrigação bíblica que diz expressamente que os homens não podem remover o cabelo entre a zona da orelha e da têmpora. A maioria dos judeus hassídicos preferem mantê-lo longo, muitas vezes com vários centímetros e impecavelmente encaracolado.

Acreditem, porque eu vi com os meus próprios olhos a acontecer, os chapéus são mesmo muito importantes ao ponto de terem uma “mala” própria para a viagem e seguirem com o passageiro na cabine do avião (mesmo que isso implique não levarem mais nenhum item). Chamam-se shtreimels e são uma das peças mais caras da tradicional vestimenta dos ultra-ortodoxos. Tal como as mulheres, também os homens devem cobrir a cabeça, seja através de um chapéu normal ou, em casos especiais como o do casamento ou do shabat que vemos na série, exemplares mais elaborados com pelo de animal — de zibelinas ou de raposas — que podem custar entre mil a seis mil euros.
Relativamente ao uso da tecnologia, é certo que aqueles membros da comunidade de Williamsburg são mesmo um caso muito particular, não se esqueçam disso. Aliás, aproveito para relembrar que esta minha reflexão e partilha não é sobre todos os Judeus ou sobre todas as pessoas com quem contactei em Israel mas unicamente sobre aquela comunidade. Israel é tecnologicamente altamente desenvolvido. Os judeus ultra-ortodoxos, na sua maioria, podem usar livremente telemóveis, carros ou outro tipo de tecnologia. Ainda assim, o uso é restrito, já que não podem ver televisão ou consultar a Internet, tidas como formas de acesso a conteúdos que podem desviá-los do caminho religioso. E sim, a pornografia está absolutamente proibida. Têm de “procriar”, repor o número de judeus que foram assassinados no holocausto – o que é bem explicado em “Unorthodox”.

Pipocas! Vai saber bem terem um balde de pipocas para não sentirem o murro no estômago com tanta violência!
E como na religião, pipocas são pipocas, podem cobri-las com chocolate ou com caramelo. A escolha é vossa – PopCorns: chocolate or caramel?

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