Lei(tura) obrigatória

– Raça! – rugiu o rato. – é rija a rolha!
Por estes dias, na cerimónia de lançamento do Plano Nacional de Leitura (PNL), na Biblioteca Almeida Garrett, no Porto, o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, leu o trava-línguas O Rato e o Rei, enquanto Teresa Calçada, a comissária do PNL apregoava que “a leitura deve ser vista e protegida como um bem a que todos têm direito e a que todos devem ter acesso”.

“Ler é ter dignidade e liberdade, ler é poder”. Quem é digno por estes dias? Digno de quê? Liberdade? E o que se faz com ela? Poder? Poder o quê? Poder sobre o quê e sobre quem?
No que toca ao PNL, criado em 2006 pelo Governo para melhorar os níveis de literacia e leitura dos portugueses, o “poder” está no Ministério da Educação, em articulação com as tutelas da Cultura e da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Caro leitor, servindo-me dos princípios de Kochen, retenha esta informação e faça dela um conhecimento sábio para compreender os parágrafos seguintes.
Durante anos, especialmente durante a primeira década do ano 2000, ouvimos, lemos e vimos, nas notícias os (maus) resultados que os alunos portugueses obtinham no PISA (Programme for International Student Assessment) mas em 2015, pela primeira vez em seis edições, naquele que é o maior estudo da literacia, os estudantes portugueses de 15 anos conseguiram um desempenho acima da média da OCDE, tanto a ciências, como a leitura. A matemática mantiveram-se na média. Faz sentido não faz? Lembremo-nos onde está o “poder” sobre o PNL e poderemos compreender esta inegável evolução desde que o país começou a participar neste estudo, em 2000, quando os dados mostravam “uma conexão diminuta entre o que é avaliado na escola, na disciplina da Língua Portuguesa, e o que está em causa na avaliação no PISA”, um maior sucesso relativo quando o texto proposto era uma narrativa (superando, até, os valores médios da OCDE – o problema é que não é isso que o PISA testa), suficiente capacidade de interpretação em oposição à de reflexão, valores muito negativos nas respostas a textos dramáticos e informativos e “bastante modestos” na matemática e ciências. Conclui-se que os resultados obtidos se relacionam com “as práticas de leitura dos alunos e as práticas de ensino da leitura na escola”, com os perfis pessoais (estratégias de estudo que utilizam; esforço e perseverança; autoconceito, sentimento de eficácia, sentido de pertença e motivação; velocidade com que lêem correctamente), perfis das famílias (em que os recursos educacionais e a interacção cultural entre pais e filhos se manifesta mais influente do que a questão socioeconómica) e com o investimento do país na educação.
Voltemos à Almeida Garrett. De acordo com a comissária, este PNL visa “colocar a leitura e a escrita no centro da escola” com o objetivo de permitir que os alunos consigam “lidar de forma crítica com informação, para estruturar o conhecimento, melhorar as aprendizagens, a qualificação e o sistema educativo (…) conciliando o analógico e o digital”. Será? Ou, admitindo como legítimo este objectivo, não haverá um outro velado? Não terão já os nossos Ministérios descoberto a “receita” para, quando abrir a caça ao voto, apregoarem, entre beijinhos e abraços nas feiras, os resultados do PISA? Senão, atenda, caro leitor, no que acrescentou, ainda, Teresa Calçada naquela Biblioteca acerca do papel do Estado relativamente à prática da leitura: “Compete-lhe, como em qualquer política pública (…), investir, apoiar e criar as condições necessárias e fundamentais para que todos tenham acesso à leitura, mas a leitura não acontece de forma espontânea, adquire-se, é adquirida e, para tal, exige competências, bastantes competências”.
Consequentemente, concentre-se nestas palavras que não são ingénuas: a leitura é adquirida e exige competências. Por mais que tenhamos um «Plano» perfeito, uma Constituição com vários artigos eximiamente dedicados à Educação e uma Declaração Universal dos Direitos Humanos que também se dedicou à instrução, sem olvidar os Direitos Inalienáveis do Leitor (o único documento em que este direito, pela sua natureza, mais aproxima os indivíduos da sua obrigação de se informarem, conhecer e saber), se não agirmos (pro)ativamente, apropriando-nos das possibilidades que tais nos ofertam, continuaremos a ter e a ser “ratinhos de cobaia”. Deram-nos o poder de sermos homens e somos nós que nos fazemos ratos.
E as famílias? E as famílias? «O rato roeu a roupa do rei de Roma. A rainha ruim resolveu remendar.»

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