Não é o tempo: é a vida!

E se em vez de «vida» lhe chamássemos «narrativa» e , em vez de usarmos o verbo “viver”, passássemos a narrar, a relatar os “acontecimentos que remetem para o conhecimento do Homem e das suas realizações no mundo”?

Por estes dias é este o pensamento que me tem ocupado, que, como as luzes na árvore de Natal, nunca se apaga: vai e vem, ora pisca ora não pisca mas volta sempre para iluminar. E penso no ciclismo como uma narrativa, um encadeamento discursivo, relações com os acontecimentos que relata e o ato que o produz – uma expressão do mundo exterior e objetivo.
Porém, a cada treino lá está aquela ideia a ganhar forma. Se o mundo exterior é tão objetivo porque é que eu não o vivo assim? Ou devo dizer antes: porque é que eu não o narro assim? É que a cada saída disciplinada para treinar o mundo para e deixa de avançar. Não é que a terra pare de girar! É que o mundo para! O tempo para! E o que nós somos é tempo! O que nós temos é tempo: tempo para trabalhar, tempo para amar, tempo para estar, tempo… contamos a vida em tempo! Mas todos os dias eu poupo tempo: roubo às 24h umas quatro, cinco outras vezes mais horas ainda.
Eu sei que a este ponto da leitura já a muitos dos leitores tocou a campainha na memória sobre as aprendizagens na aula de Língua Portuguesa. “Ah! Bolas! Em lembro-me que o «tempo» era uma categoria da narrativa mas que não era todo igual: havia «vários tipos de tempo»!” Ora nem mais! Mas aquilo que foi uma aprendizagem escolar para aplicar à literatura ganha em mim uma “estranha forma de vida”.
Toda a narrativa precisa de tempo. A personagem da narrativa, para que (se) desenrole ação, precisa de tempo. Eu preciso de vida que o meu tempo parece não dar conta da sucessão dos anos, dos dias, das horas em que acontece a história ou dura a ação porque a duração da ação real ocorre sem que haja um sistema de medida que se adeque a ela: não cabe no calendário nem no relógio ou na ampulheta.
Alguém se erguerá e fará ouvir-se: “Ó querida Ilda, não sabe que o tempo não é todo igual? Diz-se tempo cronológico se indica as datas e sucessão dos acontecimentos; considera-se tempo histórico o que corresponde à época ou ao momento em que decorre a ação; chama-se tempo do discurso ou da narrativa ao que obedece à sequência do próprio enunciado; e é tempo psicológico o que exprime a vivência subjetiva das personagens, que permite uma perceção do decorrer do tempo. A menina está a referir-se a este último!”
Seria fácil aceitar as coisas assim: engavetar, «labeling». Só que todos os dias saio para treinar e volto com esta sensação de que roubei tempo à vida, de que o tempo não passou por mim. Os segundos, os minutos, as horas foram passando desde o momento em que terminei o treino, depois com as tarefas diárias, as coisas banais e mundanas, as horas de sono, o pequeno-almoço e “plim”, no momento em que pressionei o botão “iniciar treino” do Polar que está no guiador da bicicleta tudo gelou e tomei o “elixir da juventude”. Durante as horas de treino eu sou imortal: à minha volta, gente que envelhece, que se aborrece, que se arrasta para o trabalho, condutores desenfreados, a mulher a quem rebentaram as asas do saco das compras de tão carregado que ia, o filho que faz birra porque não quer ficar na escola, o peixeiro a buzinar a adivinhar a freguesa, uma mãe a dar à luz, mais uma bomba que rebentou, a descoberta para a cura daquela epidemia, uma baleia que deu à costa carregada da irresponsabilidade civilizacional. E eu não dou por nada. Eu passo, contemplo, sigo. Talvez seja este o segredo. Quem sabe não é o desporto que faz bem e por isso parece que demoráramos mais a envelhecer, mas ocorre, isso sim, magia, um milagre, uma operação incapaz de ser compreendida, analisada e descrita pela razão e pela lógica humana: uma outra espécie de vida – não, uma outra vida!
Sim, é isto: ao Treinar narro a Vida!

Obrigada 🙏




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