Na India, Portugal estranha-se tanto quanto o “spicy” que se impõe aos atletas internacionais

Ela está serena. O voo parte daqui a pouco mais de oito horas e ela está serena.

Saiu do trabalho e foi para casa cozinhar para si e para o marido – o seu melhor lado – que, lá pelas 19h30, encerrará o estabelecimento comercial que dirige. Priva-se de muito mas não abdica destas simplicidades que lhe alimentam a determinação, recarregam as convicções e suportam a mais genuína das revindicações: o direito à vida! É o «especial-jantar-de-até-já» e ela – isso basta para o distinguir dos outros alourados com o mesmo amor. Não dispensa a sobremesa e só depois fará a mala. Agrada-lhe a presença dele que, por cima do seu ombro, verifica a lista de itens de nutrição e as peças de roupa. Cada vez se demora menos a preparar a mala; cada vez menos coisas –sobrar-lhe-á espaço para o essencial, da ida e do regresso.
Ela dorme serenamente, agora. Parte em pouco mais de seis horas e despertarão pelas 4h. Porém, ela acordará por si. 2016 passou-o nas nuvens, flutuando de nação em nação com as cores lusas, correndo em 11 países para realizar 29 dias de competição das 16 provas de BTT, entre XCM e XCO, Campeonato da Europa e do Mundo…
Ela diz que nunca está só. Di-lo com tal convicção que chega a acreditar em tal e despendem-se num enlace tão célere quanto cúmplice – minutos que a abraçarão até daqui a quinze dias, quando voltar a sentir o cheiro de perfume no pescoço dele. Seguem ela, a mochila vermelha dele às costas, um trólei e aquela geringonça de quatro rodas quase do seu tamanho onde vai a sua companheira de horas e quilómetros – juntas vivem experiências de que guardarão segredo, não por lhes faltar ouvintes mas porque são «pessoais e intransmissíveis». Olhará para o lado (nunca para trás) porque sabe que ele a buscará até aos limites das vidraças do Sá Carneiro e, enquanto houver Wi-fi, ilegalmente, ele conduzirá trocando mensagens com ela.
Não pensa no que deixa para trás porque a sua razão não concebe a perda – sempre ganhará, ainda que não a vejas no 1º lugar do pódio. Depois de lhe deixar o colo, está entregue àquela vontade de adotar do desconhecido e é aquilo que lhe anima a matéria: Hild.
Não conta as horas porque lá, de qualquer das formas, o tempo é outro: 4h30’ a mais no fuso horário, tecnologicamente incomparável, social e culturalmente desfasado. É este o crono que a leva a enfrentar o ar rarefeito que teimará em oprimi-la – não o dos Himalayas mas o dos costumes e das práticas machistas que (ainda) imperam. Ela insiste, uma vez mais, em derrubar aquele “ainda”.
Na India, Nova Deli, capital, é ponto de passagem mas nem por isso lhe descora a mercê – as pessoas. Os ponteiros perfazem pouco mais do que duas voltas completas ao relógio e ela vive uma estória daquelas que enchem as páginas dos romances com a leveza de quem só está de desapegada passagem.
Na India, encontrará, no norte do país, na fronteira com o Tibete e Nepal, Uttarakhand. Não se dedicou a investigar o Governo porque, apesar da profissão, o conhecimento prático lhe apraz ao livresco e espera por cheirar, saborear, tocar, correr os treze distritos do estado fundado quando ela iniciava a primeira licenciatura, em Ensino de Português e Inglês, há dezassete anos.
Na India, Portugal estranha-se tanto quanto o “spicy” que se impõe aos atletas internacionais – está nas ruas e nem a poluição do ar o asfixia e estará, hiperbolicamente, em tudo o que se entregue às papilas gustativas. Ela, qual embaixadora, sente a sua alma e descreverá «a praia lusitana» em toda a sua diversidade como quem conquista fiéis.
De volta a Uttarakhand, a 359km da capital – 12h de autocarro que, a experiência anterior na cordilheira permite afirmar, estará ao final de longas horas a subir infindáveis kms na montanha. Lá fala-se Inglês mas há quem apenas saiba Hindi, ainda que a taxa de alfabetismo seja de 80% – quase compartilhada entre os géneros. Uttarakhand, cuja capital é Dehradun (que verá chegar os ciclistas na última etapa) e a segunda principal cidade é Nainital (aquela que acolherá os corredores, o prólogo e os lançará para a 1ª etapa de mais de 884km do «Himalayan MTB Ultimate Challenge»), tem 54483km2 de área (86% são montanhas e florestas) habitada por 10116752 de pessoas – apenas aqui em parcial igualdade entre homens e mulheres (5154178 a fazer frente às 4962574 “oikonomistas”). Aqui a rupia tenderá a oscilar o seu equivalente a 1 cêntimo por força das leis de mercado entre as zonas turísticas e as aldeias onde só uma corrida de BTT por etapas ousa passar.
De volta a Uttarakhand, de onde não conhece nada nem ninguém; apenas sabe o nome dum dos elementos da organização com quem trocou emails e que tão pouco é seu amigo no facebook.
De volta a Uttarakhand, «Devbhumi», literalmente «a terra dos deuses» (330 milhões). Uttarakhand, «Uttar» mais «Akhand»: Norte Unido e Indivisível! Mas «Khand» também significa «doce» e, para lá do Norte que ela busca para preencher o espaço vazio da mala e das comunhões unidas e indivisíveis entre participantes, o lugar que conquistará para as mulheres Indianas na 4ª edição deste evento – já não a prata que conquistou para Portugal – é o doce que aprimora o spicy que Hild não estranha.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *