Planos de treino, calendários de corrida, deslocações, planos de nutrição, treinos complementares, tudo isto acrescido à rotina pessoal e profissional – a época das nossas ciclistas leva-as a um dia-a-dia diferente da população comum.
Mas chegou outubro e com ele a off season. Então, o que é que elas fazem quando a longa temporada termina e os dias de stress são substituídos por um pouco de mundana tranquilidade?
Dona Jacorina muito se estremece dentro do seu cubículo de quatro rodas ao passar pelas fininhas! É ver-lhe os olhos saírem-se-lhe das órbitras de cada vez que os vê ocupar a área reservada à sua frente em plenos semáforos!
O Sr. Ludovico não nutre grande simpatia por aqueles tipos de licra e, para ele, toda aquela mulherada a fazer pandã com o velocípede não deve de ter frigorífico para encher! Contorce-se quando tem que aguentar os cavalos à espera que a linha contínua acabe para conseguir ultrapassá-las porque lhe faz espécie tais figurinhas na mesma via que ele!
Se ainda ao menos houvesse regras para esta mixórdia de veículos!
Ela acorda e, ainda a enfrentar os primeiros goles de cafeína matinal, choca com as notícias dos desportivos nacionais. Salta de um para outro, dos mais generalistas às revistas da especialidade. O ecrã do telemóvel difunde, mais vírgula menos vírgula, o mesmo conteúdo: “A Assembleia Geral da Federação Portuguesa de Ciclismo aprovou o plano de atividade e orçamento para 2023, que ronda os cinco milhões de euros, e os calendários das diversas disciplinas para a próxima temporada.”
Estorcega os lábios. Franze o sobrolho. Despertou-lhe mais a curiosidade do que o americano. Os textos avançam no profissional masculino. Eis que lê algo que a faz saltar da cadeira: “Na próxima temporada a categoria de elite vai ter 71 dias de competição, 54 em 11 provas por etapas e 17 em corridas de um dia (…). A Volta a Portugal para as categorias inferiores tem datas definidas: Volta do Futuro de 1 a 4 de junho, Volta de juniores de 24 a 27 de agosto, Volta de cadetes de 18 a 20 de agosto e Volta feminina de 27 a 30 de julho.” “Categorias inferiores”? “Volta feminina”? Uma explosão de questões enfurecidas assombra-lhe o pensamento.
– Quem é o “pseudoprofissional dos media” que (in)forma assim a opinião pública sobre o ciclismo feminino?
Qualquer semelhança com o título da crónica do mês passado não é pura coincidência nem ficção – é só a continuação dos episódios anteriores de uma tradicional saga em que mudam os atores, mas mantêm-se as personagens protagonistas; variam as secundárias, porém os figurantes permanecem! É uma novela portuguesa com certeza!
Recapitulemos as últimas cenas dos episódios anteriores: “Contudo, não é só na estrada que a mesa é farta mas não se deixam lá participar os atletas! Também no BTT podemos ficar de máquina de calcular na mão à espera de uma equação que explique o que escapa à compreensão do “treinador de bancada”. Anunciemos, então, o que vai dar que falar ao longo dos próximos dias e as notícias de fins de semana por vir com os Campeonatos do Mundo das diferentes vertentes do ciclismo! Claro que ainda não está o público inteiramente informado da comitiva nacional. Por isso, é esta uma boa oportunidade para si! Faça as suas apostas: Quem foi? Quem ficou de fora? E, claro, quais as medalhas e quais os campeões?”
Atualizado o leitor, devo questioná-lo: acertou em algum dos palpites?
Se apostou que a seleção de estrada apresentar-se-ia sem qualquer atleta feminina, parabéns! A seleção recaiu, entre nove contemplados, apenas para um género! Você avança uma casa! Se apostou que no seu comunicado aos media a Federação Portuguesa de Ciclismo escudar-se-ia nas “especiais exigências logísticas e orçamentais” de um mundial para, com a possibilidade de participar com três elites e quatro júniores femininas, não convocar qualquer ciclista feminina, parabéns! Você avança mais uma casa! Se apostou que na prova de Contrarrelógio, o campeão nacional ficaria fora do naipe de convocados para representar a nossa seleção nos mundiais de estrada, parabéns! Você avança mais uma casa! Se apostou que, apesar de os resultados dos atletas portugueses permitiram à Federação convocar seis atletas masculinos elites, Portugal apresentar-se-ia com uma Seleção lacunar, parabéns! Você avança mais uma casa, pois foram quatro os eleitos! Se apostou que seria a convocatória de Júniores masculinos a mais íntegra, parabéns! Você avança mais uma casa e habilita-se ao título de “melhor espectador das novelas do ciclismo cá por casa”!
Avancemos para o nível seguinte neste nosso jogo de apostas. Se você apostou que também no btt a hegemonia de género manter-se-ia e Portugal far-se-ia representar marcadamente no masculino, muitos parabéns! Não há dúvidas de que desse lado está um leitor que (re)conhece à distância o argumento das “novelas do ciclismo cá por casa”!
Qual a próxima cena? Será que este capítulo chegou ao fim? Seguir-se-à uma nova temporada? Não perca os próximos episódios, porque “NÓS” também não!
Durante as últimas semanas a Volta a Portugal alegrou os dias dos portugueses. Aficionados, ou nem por isso, Portugal esteve à Volta da festa sobre rodas!
A Volta deu que falar (e muito) ainda antes de sair à rua devido ao caso da perda da licença desportiva da W52 – FC Porto. Faltou a equipa e faltaram os adeptos acérrimos a engrandecer a moldura humana que nos habituamos a ver a acompanhar a caravana.
Diz o povo que “enquanto os cães ladram, a caravana passa”. Passou a Volta, sempre adorada; mas, enquanto passavam as bicicletas, totalmente despercebidas passaram (uma vez mais) importantes decisões da Federação Portuguesa de Ciclismo tomadas em sede muito própria. Primeiro, decidiram em pelouro apropriado que Portugal não usaria as vagas totais disponíveis que os atletas haviam conquistado e que não compareceria ao Tour de l’Avenir.