Ela acorda e, ainda a enfrentar os primeiros goles de cafeína matinal, choca com as notícias dos desportivos nacionais. Salta de um para outro, dos mais generalistas às revistas da especialidade. O ecrã do telemóvel difunde, mais vírgula menos vírgula, o mesmo conteúdo: “A Assembleia Geral da Federação Portuguesa de Ciclismo aprovou o plano de atividade e orçamento para 2023, que ronda os cinco milhões de euros, e os calendários das diversas disciplinas para a próxima temporada.”
Estorcega os lábios. Franze o sobrolho. Despertou-lhe mais a curiosidade do que o americano. Os textos avançam no profissional masculino. Eis que lê algo que a faz saltar da cadeira: “Na próxima temporada a categoria de elite vai ter 71 dias de competição, 54 em 11 provas por etapas e 17 em corridas de um dia (…). A Volta a Portugal para as categorias inferiores tem datas definidas: Volta do Futuro de 1 a 4 de junho, Volta de juniores de 24 a 27 de agosto, Volta de cadetes de 18 a 20 de agosto e Volta feminina de 27 a 30 de julho.” “Categorias inferiores”? “Volta feminina”? Uma explosão de questões enfurecidas assombra-lhe o pensamento.
– Quem é o “pseudoprofissional dos media” que (in)forma assim a opinião pública sobre o ciclismo feminino?
Qualquer semelhança com o título da crónica do mês passado não é pura coincidência nem ficção – é só a continuação dos episódios anteriores de uma tradicional saga em que mudam os atores, mas mantêm-se as personagens protagonistas; variam as secundárias, porém os figurantes permanecem! É uma novela portuguesa com certeza!
Recapitulemos as últimas cenas dos episódios anteriores: “Contudo, não é só na estrada que a mesa é farta mas não se deixam lá participar os atletas! Também no BTT podemos ficar de máquina de calcular na mão à espera de uma equação que explique o que escapa à compreensão do “treinador de bancada”. Anunciemos, então, o que vai dar que falar ao longo dos próximos dias e as notícias de fins de semana por vir com os Campeonatos do Mundo das diferentes vertentes do ciclismo! Claro que ainda não está o público inteiramente informado da comitiva nacional. Por isso, é esta uma boa oportunidade para si! Faça as suas apostas: Quem foi? Quem ficou de fora? E, claro, quais as medalhas e quais os campeões?”
Atualizado o leitor, devo questioná-lo: acertou em algum dos palpites?
Se apostou que a seleção de estrada apresentar-se-ia sem qualquer atleta feminina, parabéns! A seleção recaiu, entre nove contemplados, apenas para um género! Você avança uma casa! Se apostou que no seu comunicado aos media a Federação Portuguesa de Ciclismo escudar-se-ia nas “especiais exigências logísticas e orçamentais” de um mundial para, com a possibilidade de participar com três elites e quatro júniores femininas, não convocar qualquer ciclista feminina, parabéns! Você avança mais uma casa! Se apostou que na prova de Contrarrelógio, o campeão nacional ficaria fora do naipe de convocados para representar a nossa seleção nos mundiais de estrada, parabéns! Você avança mais uma casa! Se apostou que, apesar de os resultados dos atletas portugueses permitiram à Federação convocar seis atletas masculinos elites, Portugal apresentar-se-ia com uma Seleção lacunar, parabéns! Você avança mais uma casa, pois foram quatro os eleitos! Se apostou que seria a convocatória de Júniores masculinos a mais íntegra, parabéns! Você avança mais uma casa e habilita-se ao título de “melhor espectador das novelas do ciclismo cá por casa”!
Avancemos para o nível seguinte neste nosso jogo de apostas. Se você apostou que também no btt a hegemonia de género manter-se-ia e Portugal far-se-ia representar marcadamente no masculino, muitos parabéns! Não há dúvidas de que desse lado está um leitor que (re)conhece à distância o argumento das “novelas do ciclismo cá por casa”!
Qual a próxima cena? Será que este capítulo chegou ao fim? Seguir-se-à uma nova temporada? Não perca os próximos episódios, porque “NÓS” também não!
Eles passam e vão atordoados! Os veículos seguem no ensaio da cegueira com pressa para chegar a lado nenhum porque não há destino mais valioso do que o afeto que nos espera a todos (sem exceção).
Se os portugueses já passaram a considerar os apoios fiscais e o reembolso de certa quantia na aquisição de bicicletas, a proposta da criar um incentivo no valor de 0,24€/km pedalado para quem utilize a bicicleta no contexto casa-trabalho ou casa-escola (num valor máximo de 600€/ano/pessoa) por certo que integraria bem a ordem de trabalhos de qualquer partido político.
Mas, será que este valor convence, de facto, os portugueses a fazerem-se à estrada de bicicleta para o trabalho e para a escola? Será que não valerá a pena ampliar este incentivo, tornando-o realmente significativo para o rendimento das famílias e alargá-lo para lá daqueles dois usos?